Thursday, May 25, 2006

Três gerações de banditismo

Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, chefe da facção criminosa autodenominada Primeiro Comando da Capital (PCC), virou celebridade e impressiona os psicólogos que o entrevistam por ser uma raridade no meio da bandidagem: apesar de criminoso desde os 9 anos, mantém-se "autodeterminado, lúcido e assertivo"(1). Trata-se de um espécime tão singular que, no mundo dos vivos, encontra-se hoje em dia apenas mais uns dois, possivelmente.

Um deles é William da Silva Lima, o Professor, assaltante de bancos e ideólogo da antiga Falange Vermelha, que originou a primeira facção criminosa organizada do País, o Comando Vermelho. O outro, Luis Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, traficante que de chefe de uma boca de fumo na favela de Caxias que lhe emprestou o apelido chegou ao posto de principal ligação com os cartéis colombianos, essenciais para a obtenção de cocaína de qualidade.

Analisando-os em conjunto, percebe-se uma espécie corrente evolutiva da bandidagem brasileira pós-golpe de 1964. Até então, os bandidos brasileiros eram os românticos das décadas de 1920 e 1930, como o gatuno italiano Gino Amleto Meneghetti, que invadia casas pulando pelos telhados, mas não usava arma, e os terríveis facínoras dos anos 1950, que atendiam por apelidos pitorescos como Coisa Ruim, Praga de Mãe e Tião Medonho.

Acusados de uma aproximação que verdadeiramente não tiveram com os presos políticos – na Ilha Grande, os militantes pediram e conseguiram que fosse erguido um muro para separá-los(2) –, os fundadores da Falange Vermelha, comandados por Professor, representaram a primeira vertente politizada do crime organizado brasileiro.

Admitiam ser transgressores da lei, exercitavam a violência com seletividade (para punir os excessos dos subordinados, geralmente, e acertar as contas com rivais) e exigiam dos poderes constituídos um tratamento condizente. Ou seja, isolamento da sociedade mediante o encarceramento, vá lá; tortura e condições insalubres de vida (superlotação das celas e comida podre, por exemplo), nem pensar.

Com a bandeira da "Paz, Justiça e Liberdade" para os bandidos, o CV deixou a Ilha Grande, onde nasceu em 1979, na rebelião contra a arquinimiga Falange Jacaré - que mais tarde daria lugar ao rival Terceiro Comando. Ganhou as favelas do Rio realizando pequenas e médias benfeitorias para os moradores, em troca do apoio contra a polícia, da mesma forma que os mafiosi sicilianos, nos primórdios, se defendiam das autoridades de Roma.

Faltou repassar devidamente a ideologia aos jovens viciados em cocaína que sucederam os patronos do CV, e a facção rapidamente descambou para a mercantilização radical do tráfico de drogas, atividade clandestina transnacional de alta lucratividade. Foi nesse panorama que surgiu Fernandinho Beira-Mar, que aproveitou os contatos de seu principal fornecedor, Leomar de Oliveira Barbosa, o Leozinho, para subir os degraus da escada corporativa do tráfico e se tornar inicialmente fornecedor de ambas as facções, sem distinção. Desta maneira, alcançou fama internacional(3), sendo apelidado pela mídia americana de "Freddy Seashore".

A conversão de Beira-Mar ao Comando Vermelho foi estritamente business, nada a ver com fatores filosóficos. Seu maior rival na primazia dos contatos com os colombianos era o chefe do Terceiro Comando Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê. Em 1994, ao assassinar Orlando da Conceição, o Orlando Jogador, chefe do tráfico no Complexo do Alemão, Uê enfureceu a ala juvenil do CV e chegou a provocar um racha (surgiu um CV "Jovem", mais cruel e marketeiro) que só anos depois foi sanado.

Sua execução na rebelião de 11 de Setembro de 2002, em Bangu, atendeu portanto aos interesses comerciais de Beira-Mar e ao senso de justiça de Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, sucessor de Orlando Jogador. Uma vez concretizada, a vingança tornou o menino pobre de Caxias o símbolo do traficante capitalista brasileiro.

Ao mesmo tempo em que resgata a tradição "politizada" herdada do Comando Vermelho, no qual o PCC foi confessadamente inspirado, Marcola tem uma vantagem sobre o Professor: na época em que os bandidos começaram a se organizar, o Estado detinha o monopólio da violência em larga escala. Décadas de investimento em armamento pesado depois, por parte dos bandidos, e de um combate difuso e essencialmente reativo por parte dos governos, as posições se inverteram.

Estimulados pelo espírito de revanche contra os esquadrões da morte das polícias, os traficantes agora são o martelo, e os favelados, a bigorna. Nós, coitados, estamos no meio.


(1) "O homem que parou São Paulo", por Lourival Sant'Anna, O Estado de São Paulo, 21/5/2006.
(2) AMORIM, Carlos. "CV-PCC: A Irmandade do Crime", Editora Record, 2003. LIMA, William da Silva. "Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho", Labortexto, 2001.
(3) International Narcotics Control Strategy 2001, disponível em http://www.state.gov/p/inl/rls/nrcrpt/2001/rpt/8476.htm

2 Comments:

Blogger Marco Aurélio said...

Beck

Até facção criminosa aqui no Brasil tem sigla. A frase mais descarada que já vi até hoje foi:
“... eu posso entrar numa delegacia e matar todos, enquanto vocês (Falando sobre a Polícia), não pode, estão aqui para me proteger”.

Um abraço

Marco Aurélio

1:54 PM  
Blogger Isabella Reinert canta said...

Acabei de conhecer o Blog e gostei muito da abordagem, sintética, extremamente crítica, quase um oásis em meio a tanta asneira que se lê.

I.R.T.

12:44 PM  

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