Wednesday, August 30, 2006

Regozijai-vos, herdeiros tupiniquins de Gutemberg

Com o discurso recheado de clichês ("a imprensa é um dos pilares da democracia", "a liberdade é sagrada") típico de quem finge defender uma imprensa livre, o Molusco Presidencial encarou a platéia da 1ª Cúpula Latino-Americana de Líderes de Jornais, encerrada ontem em São Paulo, provavelmente amparado por um par de lentes de contato cor-de-rosa. Para ele, temos “dispositivos institucionais” necessários para que essa “liberdade nunca seja ferida” e a legislação brasileira impede qualquer forma de censura (1).

Se somos esse Éden jornalístico, todavia, qual seria o motivo de figurarmos na 63ª posição do Índex da Liberdade de Imprensa 2005 da ONG francesa Repórteres sem Fronteiras - RSF(2)? O que poderia nos colocar abaixo de potências como Eslovênia (9º), Estônia (11º), Trinidad e Tobago (12º), Benin, Chipre e Namíbia (25º), El Salvador (28º), Cabo Verde (29º), Bósnia Herzegovina (33º), Ilhas Maurício (34º), Mali (37º), Chipre (53º), Níger (57º), Timor Leste (58º), Botswana e Ilhas Fiji (60º) e Albânia (62º)?

Comparado ao que alcançamos em 2003, o 63º lugar nem está tão ruim. No primeiro ano de governo petista, ficamos em 71º. No ano seguinte, galgamos alguns degraus,chegando ao 66º. No último ano da era FHC, quando o Índex formulado a partir de questionários com 50 itens enviados a jornalistas locais, repórteres estrangeiros baseados em um país, pesquisadores, juristas e especialistas regionais começou a ser publicado pela RSF, estávamos confortavelmente instalados no 54º lugar. Um pouquinho menos pior.

Garbosamente, como convém a um operário convertido às maravilhas de Armani, o sr. Presidente vangloriou-se de sermos uma nação na qual "o Estado tem se pautado por não causar qualquer tipo de interferência nos meios de comunicação social".

Verdade. Talvez leve o princípio da não interferência até longe demais.

Que o diga a repórter Maria Mazzei, do jornal carioca O Dia, cuja vida está de cabeça para baixo pela ousadia de ter revelado um esquema de fraudes em seguros a partir da venda de falsos atestados de óbito e da comercialização de corpos, protagonizado por funcionários do Instituto Médico-Legal (IML) e de funerárias(3). Obviamente, não há razão para o Governo federal se envolver, mesmo que a polícia estadual esteja conduzindo a investigação a passo de cágado manco.

O princípio da não-interferência, aliás, parece ter muitos adeptos. Como os cidadãos e eventuais guardas que assistiram o vereador Osvaldo Vivas espancar até a morte o repórter Ajuricaba Monassa de Paula, de (pasmem) 73 anos(4), na cidade fluminense de Guapimirim. O motivo? As denúncias sobre "práticas administrativas questionáveis" que o septuagenário jornalista fazia contra o edil - que por sinal é faixa-preta em artes marciais.

Melhor sorte teve o editor do Jornal do Meio Ambiente, Vilmar Berna, que apenas teve a casa invadida por seis homens, no meio da noite, que o ameaçaram de morte(5). Isso depois de diversos telefonemas em que uma voz feminina avisava que ele seria morto em breve, e de um amigo do jornalista contar-lhe que ouviu falar de um plano para seqüestrá-lo, espancá-lo até a morte e jogá-lo no mar. As autoridades parecem também não estar interferindo muito.

Para Lula, "contamos, felizmente, com todos os dispositivos institucionais necessários para que essa liberdade nunca seja ferida" e "nossa legislação impede qualquer forma de censura". Que os dispositivos existem, ótimo... agora, só resta saber quando começarão a ser colocados em ação. E aproveitando o ensejo, não faria mal alguém avisar o nosso glorioso Judiciário sobre essa questão da legislação.

D'outro modo, o que explicaria a decisão do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Amapá de proibir a Folha do Amapá de de publicar na internet a matéria de capa "Capiberibe tem 53,6% dos votos válidos e pode vencer no 1º turno", do dia 11 de agosto, sob pena de multa de R$ 10 mil diários em caso de descumprimento? A matéria sobre pesquisa de intenções de voto apontava o candidato do PSB, João Alberto Capiberibe (PSB), como vitorioso no primeiro turno, e foi vetada pela Justiça Eleitoral a pedido da coligação União pelo Amapá (PDT, PMDB, PP, PV, PSC e PRONA).

Se de fato o sr. Presidente está correto sobre os nossos dispositivos institucionais e o arcabouço legislativo, também não encontro razão para o José Ale Nahmad Netto, de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, decretar - sob pena de multa quase R$ 500 por edição (!) em caso de descumprimento - que o jornal O Correio do Estado não podia mencionar o nome do candidato do PMDB ao Governo do Estado, André Puccinelli(7). Ex-prefeito de Campo Grande, Puccinelli está sendo investigado por transferências de dinheiro esquisitas para sua conta bancária, em novembro de 2004.

Isso tudo, claro, foi só o que de mais gritante ocorreu neste ano do Nosso Senhor de 2006. Em 2005 teve mais, muito mais. O radialista José Cândido Amorim Pinto, da Rádio Comunitária Alternativa, de Carpina, em Pernambuco, foi morto a tiros em julho, depois de denunciar nepotismo na prefeitura e na câmara municipal, oito dias depois de sofrer o primeiro atentado. Maurício Melato Barth, dono e editor do jornal Infobairros de Itapema, em Santa Catarina, foi emboscado por dois mascarados e baleado, mas sobreviveu. A proprietária/colunista do semanário Primeira Pagina, do Tocantins, Sandra Miranda de Oliveira Silva, levou somente um chega-pra-lá do governador que criticou.

Nossa lei de imprensa (nº 5.250/67) tão decantada pelo sr. Presidente, assinada pelo primeiro generalíssimo pós-golpe de 1964, foi o instrumento que permitiu a prisão do jornalista José de Arimatéia Azevedo, editor do site Portal AZ, de Teresina, no Piauí. Também é com base nesse belo diploma legal que o editor do Jornal Pessoal, Lúcio Flávio Pinto, homenageado em 2005 com o Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa do Comitê de Proteção aos Jornalistas (CPJ), tem 18 processos a responder. Lá fora, é admirado por vir "corajosamente informado sobre o tráfico de drogas, a devastação ambiental, e a corrupção política e empresarial na vasta e remota região amazônica brasileira".

Ele tem informado sobre o tráfico de drogas, a devastação ambiental, e a corrupção política e empresarial. Em retorno, tem sido ameaçado e submetido a uma onda de processos espúrios. Um poderoso proprietário de mídia local, que também é político, agrediu Pinto em um restaurante em janeiro, com socos e chutes. Os guarda-costas do agressor deram cobertura durante o ataque.

Antes de desviar o assunto para o seu tema favorito, o suposto sucesso econômico do país, Lula se gaba de ter assinado a declaração de Chapultepec. Falta explicar por que só o fez no último ano de mandato. Será que estava muito ocupado antes, tentando expulsar o repórter do New York Times Larry Rohter por causa da matéria que o chamava de cachaceiro ou articulando o malfadado Conselho Nacional de Jornalismo (CNJ)?



(1) "Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de encerramento da I Cúpula Latino-Americana de Líderes de Jornais e abertura do 6º Congresso Brasileiro de Jornais", Secretaria de Imprensa e Porta-Voz da Presidência da República, em http://www.info.planalto.gov.br, e "Lula: Estado democrático só se consolida com imprensa livre", O Globo, em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2006/08/29/285466286.asp

(2) Reporters sans Frontières, em http://www.rsf.org/rubrique.php3?id_rubrique=554

(3) "Repórter é ameaçada de morte no Rio", Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em http://www.abraji.org.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=327&mode=thread&order=0&thold=0, "Threats force O Dia reporter into hiding after writing about trafficking in bodies", Reporters sans Frontières, em http://www.rsf.org/article.php3?id_article=18594, e "Jornalista que denunciou esquema criminoso sofre ameaças", Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1288

(4) "Assassinado Ajuricaba Monassa", Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=1568, e "Municipal councillor beats 73-year-old freelance journalist to death", RSF, em http://www.rsf.org/article.php3?id_article=18399

(5) "Authorities take a month to react to death threats against environmental journalist", RSF, http://www.rsf.org/article.php3?id_article=18226

(6) "Jornal Folha do Amapá é censurado em caráter liminar pelo TRE", Abraji, em http://www.abraji.org.br/modules.php?op=modload&name=News&file=article&sid=325&mode=thread&order=0&thold=0

(7) "Newspaper preemptively fined 168 euros/copy each future issue mentioning candidate for governor", RSF, http://www.rsf.org/article.php3?id_article=17891

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