Monday, April 30, 2007

Ode a um Herói anônimo

Toda vez que vejo o semblante do judeu grego – e aqui não vai nenhum ponta de anti-semitismo, por favor – que fez fortuna mediante a esperta aplicação de uma das mais velhas fórmulas inventadas pela raça humana para lidar com as massas populares (à base de trigo cozido e diversão de baixo custo e nível), me lembro da singela história de um herói nacional quase anônimo. Vale lembrá-la, para que as gerações posteriores jamais se olvidem da prolífica e abnegada obra deste herói, não por acaso um Jornalista.

Os bondosos generais que tomaram o poder em 64 preparavam-se para entregar o país de volta a uma meia dúzia de civis com os bolsos cheios do resultado da cooperação com o suave regime instalado naqueles últimos 21 anos dourados. Anos em que um governo ilegitimamente constituído – ora, e qual foi legítimo nesta nossa república mesmo? – matou apenas alguns poucos centenas de cidadãos e desapareceu com outras tantas, contra os milhares e milhares dos sanguinários regimes de alguns de nuestros hermanos latinos.

Logo no início do governo da “abertura”, decidiu-se por criar duas novas "vagas" para emissoras de TV nacionais. Ocorre que o “nº 1”, o homem que está no poder, detém a prerrogativa de conceder a quem ele desejar, ou ao que realizar o melhor tráfico de influência ou àquele que despejar mais dinheiro em seus bolsos através dos injustamente crucificados lobistas, a concessão de exploração dos serviços de transmissão de rádio e TV. Assim era então e assim o é até hoje.

Dois jornais que desempenharam o desagradável papel de expor os pontuais desvios do regime – como a instalação de um mecanismo de governo que sistematicamente violava os direitos dos cidadãos que deveria estar defendendo, dos nobres objetivos da redentora revolução – pleiteavam as concessões.

Rapidamente, nosso Herói (ex-assessor de imprensa do mesmo general) se mobilizou para garantir que uma delas ficasse nas mãos do seu então patrão, que não era jornalista, mas um gráfico cuja experiência jornalística praticamente se resumia a uma revista de fotos grandes e dedicada ao puxa-saquismo do governo em tempo integral. A única coisa que poderia comprometer a concessão era o fato de a referida revista fazer uma cobertura carnavalesca que beirava o pornô.

O intimorato Jornalista não teve dúvidas: candidatou-se a vaga de guardião da moral da nova emissora, e conquistou o objetivo. O mesmo abnegado homem de notícias ainda ajeitou o meio de campo para que o ex-camelô com queda para o trambique honesto, que explora apenas a boa fé da pessoa, assumisse o outro, privando-nos para sempre da possibilidade de uma emissora de TV minimamente inteligível.

Colocou-o em contato, por acaso, com um militar com quem o camelô servira no quartel e os dois puderam relembrar muitos episódios da caserna enquanto discutiam a proposta de uma rede que não se metesse muito nesse negócio de política, que é bastante complicado. Como “seu Sílvio” estava interessado mesmo era em grana, não houve problema. Não bastasse isso, o sobrinho do camelô era genro do milico que comandava a CIA tupiniquim, o que só fez facilitar a aproximação.

Nos anos seguintes, uma destas faliu, deixando milhares de pessoas desempregadas e sem perspectiva de receber o dinheiro que lhes era devido. Constatou-se que o tal gráfico sabia ser mau patrão como poucos outros o foram, deixou milhões em dívidas trabalhistas e 28 mil cheques sem fundos na praça.

A outra se tornou uma das legítimas encarnações do “ópio do povo” de que falava um daqueles velhos pensadores alemães com nome de quem está limpando a garganta. E tornou multimilionário o seu dono, cuja única incursão pelo mundo da política – uma candidatura a presidente na eleição de 1989 – foi sepultada simplesmente porque ele tinha se esquecido de um detalhe banal como a filiação legítima a um partido político. Teve de comprar a sua, mas o tribunal eleitoral não viu isso com bons olhos porque ele não era cliente da casa e estava atrapalhando um momento muito delicado. Era, afinal, a primeira vez em quase trinta anos que eles teriam de nos fazer acreditar que de fato escolhemos quem nos governa.

O Jornalista de notável dedicação à causa dos seus patrões e incontestável abnegação que nos proporcionou isto tudo fez fama nesta primeira rede – a do gráfico. Apresentava um programa não tratava de assuntos pesados e chatos como denúncias de corrupção, favorecimento, fraude e nepotismo que grassavam debaixo dos negros e vastos bigodes presidenciais. Ou mesmo o dia-a-dia daqueles valorosos homens que estavam retomando o controle das rédeas nacionais para a elite que sempre as teve em mãos.

Nada disso. Ele escolheu assumir o valioso – mas desprezado – papel de bobo da corte.

Em horário nobre, apresentava esquetes leves contendo material de absoluta relevância política como os tiques-nervosos dos políticos e seus gracejos e atos falhos entre um e outro discurso. Dedicava-se com afinco a transmitir ao máximo possível da população brasileira que determinado senador não conseguia pronunciar corretamente a palavra “problema”, por mais que seus assessores soprassem, entre outras valorosas contribuições ao mundo da imprensa. Para que gastar tempo com os projetos em discussão?

O conteúdo do quadro – ou a falta dele – chamou a atenção do Todo-Poderoso Ser Global, que o convocou para servir em suas hostes. A princípio, foi para ocupar posição similar à que ocupava na emissora anterior, mas depois o afilhado dos generais alçou vôos mais altos dentro da empresa do dono do país. E ainda relatou esse episódio todo em um livro para comemorar seus feitos, magnífica obra lançada em 1985.

Hoje, ele ganha mais do que eu, você, e pelos menos mais uns vinte amigos nossos juntos. Mordam-se de inveja, e palmas pra ele.

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