Thursday, May 03, 2007

Que o mistério descanse em paz

Revelado o maior segredo do jornalismo de todos os tempos! W. Mark Felt, número dois do FBI, foi o informante que levou os repórteres do jornal The Washington Post Carl Bernstein e Bob Woodward a derrubar o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, em 1974.

Desfez-se assim, com pompa e circunstância nas manchetes dos melhores jornalões do ramo, o sigilo da fonte mais famosa da história dos escândalos políticos mundiais. A bomba mereceu tratamento VIP durante vários dias. Oremos a São João Gutemberg, portanto, para que a superexposição do caso que deu novo fôlego ao hoje popular jornalismo investigativo ajude a desidratar as grosseiras deturpações dos acontecimentos que resultaram na renúncia do sr. Richard Milhous Nixon.

Republicano de boa cepa, Nixon fazia campanha forte e endinheirada pelo segundo mandato quando Bernard Baker, Virgilio González, Eugenio Martinez, James McCord Jr. e Frank Angelo Fiorini (também conhecido como Frank Anthony Sturgis) invadiram a sede do Comitê Nacional do Partido Democrata no Edifício Watergate. Reduzir a série de reportagens que jogaram a pá de cal em suas pretensões às revelações feitas pelo Garganta Profunda a Woodward insulta os mais de dois anos de dedicação praticamente exclusiva da dupla dinâmica do Post, até então um jornal de importância mediana na capital dos EUA, como sua própria dona, Katharine Meyer Graham, admitiu na autobiografia “Uma história pessoal”.

Definido por seu criador, Stilson Hutchins, como “um jornal diário democrático”, The Washington Post chegou aos anos 1970 comandado por Benjamin Crowninshield Bradlee, que tinha começado a carreira por lá em 1948. Depois de um período afastado, em passagens pela U.S. Information and Educational Exchange (USIE, órgão governamental que produz a Voz do Brasil de lá) e pela revista Newsweek, voltou ao Post em agosto de 1965. Ao assumir o cargo de editor-chefe, em decidiu que competiria com o poderoso The New York Times. Bradlee é o único do corpo de editores do jornal retratado em maior profundidade no filme de Alan Pakula, “Todos os homens do presidente” (All the President’s men, 1976).

Do editor-chefe durão e do filme, todos lembraram com entusiasmo. Não é para menos. Em 1977, na 49ª edição dos Academy Awards, Jason Robards levou o Oscar de melhor ator coadjuvante pela sua interpretação de Bradlee. O filme também rendeu exemplares da estatueta careca a William Goldman, pelo roteiro adaptado que fez do livro homônimo de Bernstein e Woodward, lançado dois anos antes; a Geoge Jenkins e George Gaines, pela direção de arte e decoração dos sets; e a Arthur Piantadosi, Les Fresholtz, Rick Alexander e James Webb, pelo som.

Houve ainda indicações para o Pakula, o editor, Robert Wolfe, o produtor, Walter Clobenz, e a atriz Jane Alexander, que interpretava a bibliotecária Judy Hoback. E para abrilhantar o papel de Woodward, ainda tinha o bonitão Robert Redford. Bernstein, a outra parte da criatura “Woodstein” – apelido coletivo dado pelos colegas da redação do Post devido à proximidade siamesa que os dois mantinham durante a apuração do caso – ganharia vida na tela na pele do talentoso-ainda-que-narigudo-e-anti-galã Dustin Hoffman.

Infelizmente, a película comete a suprema injustiça de limar, visando dar maior simplicidade à trama, o corpo de editores sem o qual os dois repórteres não teriam liberdade para conduzir suas pesquisas e entrevistas. Por conseguinte, são privados de seus louros o editor-gerente do jornal, Howard Simons (inventor do apelido famoso do informante), o editor Metropolitano, Harry Rosenfeld, e o editor do Distrito de Columbia, Barry Sussman. As contribuições de cada um para a série de reportagens estão descritas no livro “Todos os homens do presidente”, editado no Brasil em 1976, a reboque do filme-pipoca de sucesso, pela Livraria Francisco Alves Editora S.A.

Pena que, ao que parece, ninguém deu muita bola para ele.

A leitura pouparia muita gente dessa visão torta de que foram os jornalistas que “desvendaram” a ligação daquele crime com o primeiro escalão da administração da Casa Branca, como proclamam orgulhosamente os despachos das agências traduzidos nos diários daqui. O nome dos dois repórteres está na boca do povo, ninguém sequer ouviu falar da trinca de promotores Donald Campbell, Earl Silbert e Seymour Glanzer. Do senador Sam Erwin. Ou do juiz John Sirica. Uma pena.

Podemos compor merecidas odes ao jornalismo investigativo da melhor qualidade praticado pelos profissionais do Post que fizeram história, se for o caso. Todavia, por mais que faça bem aos nossos egos mostrar que podemos substituir, com eficácia até maior, certas autoridades constituídas, precisamos lembrar que o FBI conduzia investigações sobre o caso. As reportagens da dupla tiveram, de fato, importância crucial para evitar que o gabinete de Nixon conseguisse conduzir com sucesso sua “operação-abafa” e culpar os cubanos anticastristas de Miami.

Havia ainda a chiadeira democrata. O primeiro a abrir a boca, como eles mesmos contam no livro, foi o diretor nacional do Partido Democrata, Lawrence O’Brien. Quando ainda nem se sabia os nomes reais dos invasores, O’Brien fuzilava, em uma coletiva em Washington: “(a invasão) levanta a mais hedionda dúvida sobre a integridade do processo político que jamais me foi dado encontrar no curso de meus vinte e cinco anos de atividade política. Um simples desmentido, por parte do diretor de campanha do sr. Richard Nixon não será suficiente para dissipar tais dúvidas”.

O que a intrépida dupla fez, basicamente, foi descobrir o que as pessoas diziam aos investigadores quando interrogadas e ligar as peças. E fizeram isso não porque o Garganta Profunda lhes contou, como Wooward sugere, mas porque bateram perna dentro e fora do horário de serviço, tiveram um talento fenomenal para convencer as pessoas a se abrirem a respeito e uma persistência quase desrespeitosa ao abordar quem procurava evitá-los. O papel do informante secreto do ex-oficial da Marinha transformado em jornalista foi confirmar e contextualizar diversas informações, mas ele praticamente só se manifestava quando procurado.

E só era procurado porque por meio do trabalho duro, Bernstein e Woodward conseguiam acompanhar a direção que as investigações seguiam, e às vezes, antecipá-la. Isso depois de começarem o caso sendo pegos com as calças arriadas: foram furados no dia seguinte ao arrombamento pela Associated Press, que enviou despacho afirmando que James McCord trabalhava para o comitê de reeleição de Nixon. Bernstein, que se auto-designou responsável por apurar os perfis dos arrombadores enquanto Woodward acompanhava os primeiros interrogatórios deles diante do meritíssimo juiz James E. Belsen, esqueceu McCord depois que Woodward ligou do tribunal anunciando que este tinha se confessado ex-agente da CIA.

É para lá de falsa a percepção de que os dois monopolizaram as revelações bombásticas da cobertura. Quem soube primeiro da ligação entre os arrombadores e o consultor da Casa Branca E. Howard Hunt Jr. foi o repórter policial da madrugada do Post, Eugene Bachinski. Uma de suas muitas fontes lhe passou a informação de que dois caderninhos de telefones apreendidos com os presos faziam referência a Hunt, um dos fiéis e zelosos seguidores do presidente. O New York Times furou-os, entre outras, na descoberta da origem do dinheiro que financiou a operação fracassada de sabotagem da campanha democrata, em 31 de julho de 1972.

Não faltam exemplos de como os outros veículos também deram suas contribuições, apesar de somente o Washington Post ter investido pesado na história desde o início, e ainda por cima apontando o dedo para o gabinete presidencial. O que nos leva a outro pré-conceito terrível sobre a repercussão deste trabalho na época. Nixon e seus asseclas se disseram vítimas de uma campanha difamatória do jornal, que tinha como editor-chefe ninguém menos que um dos melhores amigos do ícone democrata John Fitzgerald Kennedy – argumento que serve também para comprovar que políticos não são todos iguais somente abaixo do Equador.

Até renunciar, Nixon negou ter aprovado ou mesmo sabido do extenso rol de atividades heterodoxas que seus subordinados desenvolviam para perturbar a campanha democrata. Bernstein e Woodward eram literalmente esculachados nos desmentidos lidos pelo porta-voz da Casa Branca, Ronald Ziegler. Quando vieram à tona fitas gravadas pelo próprio presidente, o batom na cueca se tornou indelével. Ziegler teve de pedir desculpas. O republicano Bob Dole, o mesmo que concorreu há pouco tempo, à presidência dos EUA, classificou o Post de “parceiro (dos democratas) na arte de enlamear” e não teve igual cortesia com os jornalistas.

Isso sem contar as escutas telefônicas, vigilância, intimidação a que eles foram submetidos, etc etc etc.

Revelada a face do Garganta Profunda, bem como de suas motivações, aliás, pouquíssimo abnegadas, faço votos que possamos algum dia derrubar essa muralha de mistificações que envolve qualquer menção ao caso. Pouco importa se Felt estava magoado por ter sido preterido na sucessão do todo-poderoso do FBI, J. Edgar Hoover, se queria proteger a imagem do “Bureau” ou coisa que o valha. Se Woodward tinha códigos elaborados para se encontrar com o ex-espião levemente paranóico. E daí? O papel do Garganta Profunda na apuração foi limitado e não forneceu aos repórteres as informações-chave sobre o que estava acontecendo.

Por quanto tempo vamos continuar valorizando a fonte que Woodward cultivou por seu passado milico, em vez de discutirmos melhor, por exemplo, o papel de Carl Bernstein, que era o veterano da dupla e foi quem levou a praticamente todas as descobertas importantes? Bernstein tinha doze anos de jornalismo e seis no Post, enquanto Woodward estava no jornal há um ano; fora reprovado em sua primeira tentativa de ingressar em uma redação, num teste de admissão, por Rosenfeld, editor que mais anos tarde lhe orientaria durante o Watergate. Aliás, antes de se tornarem parceiros, a cobertura deles foi uma competição acirrada.

Impresso ou na tela, “Todos os homens do presidente” relata como eles conduziram a apuração do caso Watergate, mas os dois lançaram, no mesmo ano, outro livro contando em detalhes como foi o longo desenrolar das investigações que forçaram Nixon a pedir a toalha antes de ser chutado do cargo, manobra que Fernando Collor de Mello aprendeu e tentou sem sucesso repetir por aqui, em 1992. Chama-se “Os últimos dias” e também foi lançado pela Editora Francisco Alves. Trocando em miúdos... existem toneladas de lições de bom jornalismo na cobertura de Watergate. Que tal debater as positivas?

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